Via
sorumbáticoPor Alice Vieira
NÃO HÁ NADA PIOR que um funcionariozinho, meu Deus!
Nada pior do que os pequeninos a quererem passar por grandes.
Os insignificantes a quererem aparentar importância.
Os que nunca na sua vida deram uma ordem, a pensarem que mandam no mundo inteiro.
Eu quero só contar uma história muito breve, e desculpem se mete outra vez a ASAE, que começa a parecer-se demasiado com o bombo das festas.
Mas não resisti.
Talvez porque desta vez nem sequer se trata de uma história que ouvi de outros, nem de uma qualquer das milhentas que todos os dias nos entopem o correio electrónico.
Desta vez é história em primeira mão.
Então é assim.
O meu amigo A. mora sozinho num casarão de uma quinta dos arredores de Lisboa. Ao pé da casa grande, a casa do caseiro, que lhe trata de tudo.
De vez em quando o A., que cozinha muito bem, reúne amigos para um jantar onde normalmente nada falta. Mas na semana passada, ou porque tivesse tido muito trabalho em Lisboa, ou por simples esquecimento, faltavam-lhe lá umas ervas que ele considerava essenciais para o cozinhado. Eu ainda lhe disse que prescindia bem delas, mas ele que não, estava em causa a sua fama de “chef” emérito, sem hortelã do ribeiro, ou lá o que era, é que o robalinho não passava.
Fomos então os dois bater à porta do caseiro, numa de “ó vizinho, dá-me salsa”, e quando o homem abre e nos faz entrar para a cozinha, os meus olhos fixam-se gulosamente num conjunto monumental de facas como há muito não via.
Facas para cortar carne, para trinchar aves, para arranjar peixe, para cortar legumes, facas grandes, médias, pequenas, com serrilha, sem serrilha, facas daquele aço alemão muito conhecido – todas dispostas numa flanela, tal como manda o figurino.
Coisa linda de se ver.
E carérrima, evidentemente.
Não me babei de inveja (pensando sobretudo nas minhas facas que nunca cortam nada a não ser os meus dedos…) mas quase.
O A. também estava fascinado e não se conteve:
- Ó homem, isto é que é coisa boa! Saiu-lhe a sorte grande ou foi alguma herança da sua mãe?
O rapaz sacudiu a cabeça e deu uma gargalhada.
- Nada de herança, afirmou. Sorte, talvez.
Porque na véspera tinha ido jantar ao restaurante em frente e o dono, seu amigo de infância, estava perfeitamente inconsolável: o fiscal da ASAE tinha-lhe entrado portas adentro e logo ali mandara deitar fora (inutilizar, quer dizer, não voltar a usar) todo aquele conjunto de facas, que ele trouxera há tempos da Alemanha, e era o seu orgulho.
Tudo porque… tinham cabos de madeira, e como ele já devia saber, não se podia utilizar madeira nos utensílios com que se manipulavam os alimentos.
- Se as quiseres, leva-as, que não me servem para nada — disse-lhe o amigo, e ele claro nem pensou duas vezes.
No fim da história ficámos ali os três, com ar de parvos, a olhar para as facas, sem saber o que dizer.
Cabos de madeira!
É evidente que não foi o Sr. Nunes que fez a apreensão. É evidente que isto é um fiscalzinho a adaptar a lei a seu modo, e a aproveitar-se daqueles segundos em que se sente dono do mundo, porque dá uma ordem e todos têm de lhe obedecer.
Mas são os fiscaizinhos que, cada vez mais, mandam em nós.
«JN» de 25 Mai 08